segunda-feira, 16 de março de 2015

Agora é pra valer

O aquecimento dos jogadores acabou. O árbitro se posiciona no centro do campo, apita e dá início ao primeiro tempo do jogo da inclusão escolar de Leti.

Devo dizer, minhas primeiras impressões da nova escola de Leti são muito boas!

A professora, para mim principal personagem deste processo, tem se mostrado muito comprometida e competente. A acompanhante, muito interessada. A coordenação pedagógica, plenamente empoderada do cenário atual e das possibilidades de trabalho.

Leti é a única criança com deficiência em sua turma e a grande maioria dos seus colegas já vem junta nesta caminhada desde bem pequeninhos (parece-me que há apenas mais um aluno novo, e proveniente do turno da tarde).

Três grandes desafios foram mapeados na fase de aquecimento: lidar com os comportamentos inadequados que atrapalham o processo cognitivo de Leti, promover sua inclusão no grupo e favorecer efetivamente o seu aprendizado.

Percebo claramente as estratégias pensadas para cada um destes desafios.

Minha afinidade com a professora foi imediata. Mas embora ela tenha me transmitido uma boa impressão desde o início, eu a estive observando neste período de adaptação. Ah, sou mãe.

Nos primeiros dias a preocupação maior foi de conhecer Leti: descobrir seus interesses, seus hábitos, suas dificuldades, sua personalidade, suas manias, seu potencial.

Trocamos muito nesta fase inicial. Passei orientações quanto ao uso do banheiro, quanto à sua esperteza para usar o corpo para não fazer o que não quer, falei da sua compulsão por comida, do seu amplo nível de compreensão das coisas, do seu interesse pela leitura.

A professora diariamente me dava um feedback da minha pequena: do soninho pós lanche, do manuseio da areia no parque, da postura frente às atividades...

Foi ela quem sinalizou para a coordenação a necessidade de uma acompanhante para poder ajudá-la com as estereotipias, deixando-a mais livre para fazer o trabalho pedagógico.

Dudú, orientador do seu grupo da Ciranda Pedagógica, esteve na escola no final de março, atendendo a uma demanda da professora e, a partir da daí foram traçadas estratégias para o primeiro ano do ensino fundamental de Leti.

A acompanhante, na semana seguinte, esteve na Ciranda Pedagógica esclarecendo dúvidas procedimentais em relação à minha pequena.

Depois de uma reunião com a coordenadora pedagógica, que aconteceu na útima terça feira, meu coração se sentiu um pouco mais aquietado em relação às minhas preocupações quanto à mudança de escola.

Mas vamos ao que interessa.

Um ponto relevante percebido pela equipe pedagógica da escola foi que Leti, visivelmente, reduz o seu estado de alerta depois do horário do intervalo, ficando menos receptiva às atividades extras.

E TODAS as atividades extras da sua turma (leia-se: educação física, arte, música e biblioteca) estavam programadas para um horário depois do intervalo.

Pensando no seu melhor aproveitamento, fizeram um ajuste no horário e deslocaram as aulas de educação física e a arte para antes do intervalo, mantendo no horário originário as aulas de música e a biblioteca, por serem atividades que já contam com a simpatia de pequena.

A coordenadora disponibilizou para Dudu os conteúdos trabalhados nesta fase inicial, para que na Ciranda possa ser feito um trabalho similar, favorecendo a familiarização e compreensão dos mesmos.

Ficou definido que apenas em dois dias Leti levaria atividade para casa, e, acolhendo minha sugestão, os dias definidos foram quarta (que não tem Ciranda) e sexta.

O planejamento semanal (ou quinzenal) e os módulos serão regularmente disponibilizados à equipe da Ciranda Pedagógica, as atividades continuarão sendo adaptadas, ainda está em aberto a forma de avaliação a que será "submetida".

Já estão levantando a possibilidade de uso de tecnologias para as atividades e alfabetização. Como Leti conhece letras, associa a algumas palavras, mas está longe de grafá-las com lápis e papel, e ainda tem-se utilizado da saliva para deixar o processo mais difícil, a ideia é encontrar um ambiente mais favorável para que suas competências floresçam com mais naturalidade.

A fase ainda é de construção de vínculos, mas com uma postura mais firme dos adultos.

O processo de descoberta do seu lugar no grupo tem assumido grande importância para a equipe. A professora e a acompanhante já vinham me sinalizando a necessidade de fomentar mais as relações com os colegas (a pró chegou a pedir que ela levasse brinquedos que gosta de casa, para trocar experiência com os colegas) e venho vendo, na prática, como isso tem acontecido naturalmente.

Chego a me emocionar vendo os sorrisos das colegas ao perceberem a chegada da minha filhota à sala de aula, o esforço que fazem para dar um tchau quando a encontram do lado de fora, a procura... Tudo tão espontâneo, tão lindo!

E mesmo ela sendo um pouco indiferente, as crianças chegam, buscam, tentam e conseguem a interação. Lá ela não é o autismo, a obesidade, a baba... É Leti! A coleguinha nova que eles querem conhecer melhor, com quem eles querem brincar.

Falo isso porque, recentemente, passei por uma situação no elevador do meu prédio que me deixou sem ação e P da vida.

Uma garotinha, mais ou menos da mesma faixa etária, quando a viu entrar no elevador, falou repetidas vezes, e num tom de inequívoca repulsa "mãe, ela é gorda!!!!". A mãe, sem saber onde enfiar a cara, tentava consertar a situação, tornando-a pior: "gorda é você, que está até indo ao nutricionista" (a menina é um palito). Não satisfeita, a menina repetia: "eca, mãe, ela baba". Porque Leti está numa fase terrível de usar a saliva para "pintar" tudo de tecido que aparece em sua frente. O clima ficou pesadíssimo, durou pouco tempo e não consegui dizer nada. Imagino que Leti não tenha sofrido com o bulying, acho que seu nível de compreensão não chega a tanto, mas me senti péssima por não me abaixar à altura da garotinha, olhá-la no olho e dizer: "olha, ela é gordinha mesmo. Você é magra. Tem gente que é alta, outras, baixas; umas brancas, outras negras; umas têm cabelos longos, outras curtos; tem gente que gosta de bicicleta, outras de bola; e tantas outras diferenças entre as pessoas. Cada um é do jeito que é e é bonito assim! Não está escrito em nenhum lugar que existe apenas um jeito certo de ser de cada um. O que importa é ser feliz. E ela é muito feliz exatamente como é. E quanto à baba, eu também não gosto, como você. Mas ela adora desenhar e descobriu que, quando não tem um lápis na mão, pode usar a baba para desenhar na roupa. Coisa de criança muito inteligente, que percebe coisas que outras crianças não conseguem perceber. Fazer o quê, né? Quando chegar no carro, dou um lápis pra ela."

Sei que sua reação foi natural para sua idade, porque criança não filtra, fala o que sente. Mas sei também que elas refletem o que vivem e, sem dúvida, pela escola onde estuda, não deve ter muito acesso às diferenças, deve viver enquadrada num padrão cruel de beleza estabelecido sabe-se-lá por quem.

Isso me fez valorizar ainda mais o acolhimento que Leti teve dos seus colegas e acreditar que está seguindo no caminho certo.

Um comentário:

Priscila Nascimento disse...

Que maravilha de adaptação escolar. Quanto ao episódio do elevador, que sirva de lição para a mãe reforçar a educação doméstica, perceber que ainda falta muito para que a filha seja motivo de orgulho quando proferir palavras ao próximo. Que da próxima vez seja para cumprimentar ou convidar para brincar e descobrir como o mundo do outro também é legal tanto quanto o seu.
bjos!

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