Depois de quase 8 meses de pandemia, a sensação que tenho é a de que vivi várias vidas em uma neste período. O tempo de euforia, quando - ingenuamente - pensei que tudo passaria rápido e queria aproveitar o momento de forma ultra-mega-power interessante e criativa, oferecendo a meus pequenos incontáveis formas de estimulação; o tempo de acomodação, quando percebi que a nova realidade não seria tão rápida como eu imaginava, e comecei a pensar estratégias para fazer a rotina da família funcionar melhor; tempo de negação, quando quis jogar tudo para o alto, esquecer que tinha filhos, e ficar ouvindo música, lendo livros e fazendo lettering e scrapbook o dia todo; tempo da retomada, quando percebi que precisava buscar um equilíbrio entre ocupar todo meu tempo entretendo as crianças ou fazendo coisas o tempo todo exclusivamente para mim...
Como era de se esperar, este também foi um tempo de viagem interna, de estreitamento de laços familiares, de redescoberta do prazer de estar em casa, de autoavaliação. Tempo de perceber as coisas que realmente importam na vida, de tentar identificar sentimentos, incômodos, de aprofundar o processo de autoconhecimento. Tempo de voltar para a terapia.
E muito dos meus ciclos, sem dúvida, sofreram influência direta do estado de Leti ao longo desse período. Um período difícil para adultos típicos, imagina para crianças autistas...
Ela, que questionou muito a impossibilidade de sair no começo do isolamento, rapidamente compreendeu as novas restrições impostas pela pandemia e pareceu se adaptar bem à nova rotina. Até a primeira recaída, perto do seu aniversário, em junho. De lá pra cá, temos vivido ciclos, que têm sido bem mais demorados nas crise que nos momentos de tranquilidade.
Por conta dela, passamos a flexibilizar mais o contato social, ao perceber o quanto lhe fazia bem estar com pessoas queridas que ela não via há tempos. Também principalmente por ela fomos, pela primeira vez (e depois mais duas), passar um fim de semana na praia, para tentar dar um tom de normalidade a nossa vida, nestes tempos nada normais. Percebendo seus sinais, começamos a promover um resgate de suas atividades rotineiras: ela aprendeu a usar a máscara, passamos a fazer caminhadas ao ar livre, ela voltou para as atividades terapêuticas. Por conta dos momentos difíceis, precisamos recorrer ao suporte da sua homeopata e da sua psiquiatra e agora estamos iniciando um caminho pela aromaterapia.
Intensificar esses altos e baixos com ela acabou por me fazer mergulhar num processo de reflexão sobre a nossa família, principalmente depois de ter lido um livro que ficou ecoando em minha cabeça (e no meu corpo todo) por semanas: Me Sinto Só, de Karl Taro Greenfeld.
No livro, Karl, aos 40 anos, resgata sua história e a narra, desde a tenra infância, como se revivesse cada momento, mostrando como cada ação de sua família foi condicionada pelo autismo de seu irmão, um ano mais novo, nascido no final da década de 60.
Apesar de Noah ser um autista severo e não verbal, vivendo numa época em que pouco se sabia sobre o autismo, a semelhança de algumas características dele com Leti fez com o livro me tocasse ainda mais.
Mas o que mais mexeu comigo foram algumas constatações de Karl sobre as implicações daquele modelo familiar em sua vida e na dos seus pais.
Ler coisas que não nos damos ao luxo sequer de pensar, por parecer violentar a lei natural da parentalidade afetiva, mas que vivem encrsutadas num subconsciente que não ousamos acessar, foi como me sentir, repetidamente, atingida por desnorteadores socos no estômago.
Karl fala do lugar de um irmão, inicialmente criança, que nutria a expectativa de viver uma relação fraternal em plenitude. Ele percebe a diferença da dinâmica familiar dos conhecidos do seu entorno em relação à sua e, por muitas vezes, desprovido de máscaras, demonstra uma revolta por se ver tolhido de sonhos aparentemente simples que considera legítimos, ou por perceber a obrigação de normalizar situações absolutamente anormais.
"Ter Noah como irmão, viver a complexa dinâmica da minha família, me faz ficar admirado com a facilidade dos relacionamentos familiares e das amizades quando as crianças envolvidas são saudáveis."
"Ele é um matador de sonhos, reduzindo a ideia de nossa família sobre uma vida melhor a um estado banal de normalidade."
Por causa dele, nossa casa é uma eterna bagunça, nossa mobília está sempre suja, o veludo do sofá é duro de saliva seca. Ele é a razão pela qual nossos lençóis têm os cantos desfiados, onde ele os mastigou, os livros não têm todas as páginas, porque ele as arrancou... e nossas janelas estão sempre embaçadas com o resíduo do seu cuspe"
Apesar das considerações representarem o olhar de uma criança, e num contexto completamente distinto do atual (naquela época, a grande maioria das famílias acabava por institucionalizar seus filhos quando não conseguia mais controlá-los, e o controle, quando possível, era feito de maneira altamente questionável), perceber que nos enxergo nesses trechos e em tantos outros do livro - em alguns com mais, em outros com menos intensidade - e que nunca, antes, me permiti aceitar que pensamentos como estes viessem à tona, para não comprometer a imagem de mãe perfeita que quero criar para mim mesma, me fez parar para olhar para isso. Olhar. Sentir. Refletir.
Desde que terminei a leitura tenho pensado muito em como esse nosso modelo familiar, que não sentiu 10% das dificuldades vividas pela família de Noah na década de 70, seja pela forma de abordar o autismo, seja pelo nível de severidade do autismo dele, tem sido moldado por conta da condição de Leti.
A comida sempre em lugares inacessíveis por conta da sua compulsão, os quartos todos trancados para ela não bagunçar toda a roupa para passar cuspe (porque nessa quarentena, por um período, ela ampliou a obsessão pelos lençóis e passou a procurar nossas roupas), o cheiro de xixi pelo ar - do colchão que seca na varanda ou do descuido no sofá-, os lençóis espalhados pela casa, os baques surdos e repentinos das pancadas que ela dá com a cabeça na parede ou no blindex do banheiro, a complexidade que gira em torno de coisas aparentemente simples, como um passeio ao parque ou uma pequena viagem. O estado constante de alerta.
E embora eu já tivesse muitas vezes ponderado sobre a forma como a diversidade da nossa família amplia nosso olhar, favorece nossa empatia, nos aproxima de pessoas especiais e melhor nos capacita a lidar com o diferente - e este aspecto positivo é inegável! - percebo agora que não posso ter o pudor de deixar de enxergar também o outro lado da moeda, e ver como tais características podem gerar tensão, medo, revolta, sentimentos estes inerentes ao ser humano.
Ontem, quando fazia minha leitura noturna na sala, sentindo o cheiro do xixi, escapado do cochilo vespertino de Leti no sofá, e via os inúmeros lençóis (100% poliéster, que ela usa para passar cuspe, dizendo que tá desenhando) espalhados pelo chão, mais uma vez pensava em como tudo isso tem impactado em nós. Em como às vezes o que desejo é só um pouco de normalidade; poder circular pela casa sem me preocupar se Mateus esqueceu alguma guloseima em lugar visível, ouvir um barulho e não associá-lo imediatamente a alguma autoagressão ou a algum rompante de Leti (que já quebrou 3 tablets nesta quarentena), poder sair para caminhar na pracinha com leveza, sem ter que convencê-la a ir, grudada a meu corpo, com medo sabe-se-lá de quê, ter uma tarde livre em casa enquanto os filhos saem para fazer algo com seus amigos...
E eis que hoje, Binha (minha irmã), chega em casa, diz a Leti que lhe comprou um lençol, e minha filhota, do nada, resolve que vai a casa da tia, com ela, buscar seu presente. Combina como vai e como volta, pega sua máscara, seu sapato, seu tablet, me dá TCHAU e vai. Sem mim e sem Samir, como costuma ir quando precisa ficar na casa da avó paterna para fazermos algo. E ficou lá por toda a tarde, numa boa. Vê-la ir por iniciativa própria, sentir sua alegria, seu interesse, sua segurança naquele ambiente e naquela companhia me encheu de felicidade. Sentir o compartilhamento desta felicidade com minha irmã e meu cunhado, nos quais minha pequena encontrou o acolhimento capaz de fazê-la vencer seus medos, trouxe mais leveza a meu dia e me aproximou da sensação de normalidade que tantas vezes eu busco.
E, curiosamente, foi esse pequeno-grande deleite que me fez, finalmente hoje, tentar traduzir em palavras os efeitos em mim da leitura concluída há quase dois meses.
Embora o fato em si pareça destoar completamente do que ficou mais forte da leitura, serviu de gatilho para me fazer, mais uma vez, buscar investigar, tentando não moralizar, sentimentos escondidos nas memórias do meu subsolo. Mas, por ora, minha ideia é simplesmente sentir, sem tentar racionalizar, e com o coração aberto para acolher TUDO o que há de humano em mim, seja o que for, certa de que não será isso - unicamente - que caracterizará a minha maternidade.